Mensagem de Veto
Altera a Lei n o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1 o A Lei n o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
"Art. 26-A.Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1 o O conteúdo programático a que se refere o capítulo deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2 o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3 o (VETADO)"
"Art.79-A. (VETADO)"
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra'."
        Art. 2 o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
        Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182 o da Independência e 115 o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Nova lei inclui o estudo da África e da cultura afro-brasileira nas escolas.
 

O professor Carlos Serrano, do Departamento de Antropologia, concede entrevista e fala sobre a nova lei que insere o estudo da história e da cultura afro-brasileira nos Ensinos Fundamental e Médio. A lei inclui história da África, dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra e suas contribuições nas áreas social, econômica e política. Angolano, Serrano pertence ao Centro de Estudos Africanos da FFLCH – (Faculadade de Filosofia, Letras, Ciências e Humanas).
.:: Rodolfo Vianna

Professor, qual a importância da nova lei?
Isso não é uma novidade, penso eu. Para aqueles que lidam, sobretudo com o ensino dos temas ligados à África é uma criação que vem já há muito. Principalmente na Universidade na medida em que houve continuamente uma luta, por parte daqueles que trabalham com coisas ligadas à África ou afro-brasileiras, de fazer prevalecer um espaço onde essas discussões possam acontecer. Não se deve esquecer que também o Movimento Negro como no caso da Bahia tem uma experiência no campo educativo desde a década de 80. Então, nós dentro do Centro de Estudos Africanos dentro da USP, criado há mais 30 anos, tínhamos em parte essa finalidade: trazer para a Universidade um espaço que pudesse ser de reflexão e de dar a conhecer determinados aspectos, não só do conhecimento africano, como algumas dimensões da diáspora.

A diáspora a qual o senhor se refere é o movimento originado da escravidão, com a retirada de negros da África pelo tráfico?
Sim, e de criação de uma cultura própria. Não se poderia dizer que há, agora, uma cultura africana, mas durante todo esse tempo construiu-se também uma cultura específica dos afro-descendentes. Coisas que facilmente se encontram no dia a dia, que as pessoas podem não perceber. A forma do linguajar, no léxico empregado no cotidiano, uma infinidade de palavras de origem africana e que se esquece, inclusive como tributo cultural africano que hoje, evidentemente, é brasileiro porque foi criado aqui. Seja lingüistico, seja de ordem religiosa, que é importante, culinária, enfim, vários aspectos que até se folclorizam mas que não se cristalizaram, ao contrário, vão se transformando e até foram apropriados pela sociedade. Basta falar de MPB. O que é MPB? Nada mais é do que uma música que tem origem afro-brasileira. O samba, etc.
Agora, a Universidade de São Paulo vêm fazendo seus estudos e revertendo-os à sociedade bem como na Universidade Federal da Bahia (Centro de Estudos Afro-Orientais), a Universidade Cândido Mendes (Centro de estudos Afro-Asiáticos) e um Núcleo de estudos Africanos na Universidade de Brasília, coisa que pouco ocorre nas outras Universidades no Brasil. Esse decreto, penso que vai novamente levantar a questão das Universidades terem, por exemplo, um curso de História da África, que nem todas tem, não havia a obrigatoriedade.

E pela lei 10.639 também haverá a expansão para os Ensinos Fundamental e Médio?
Exato. O problema é esse, o de transformar todo o conhecimento que as Universidades produzirem em não só acadêmico, mas também acessível às escolas. Não existe produção maior nesse campo. Nós vemos nos livros didáticos parcelas pequenas, correndo sobre aspectos importantes que eu acho que agora devam ser exploradas numa linguagem diferente e de forma sistemática.

Como o senhor vê o veto à obrigatoriedade de 10% do currículo destinados ao ensino da história e cultura afro-brasileira?
Eu tenho a impressão que a não exclusão dos 10% seria justamente por isso, por haver uma falta de um raciocínio didático. Só espero que os 10% não sejam reduzidos a 1%. Porque isso já é o começo. Enfim, foi feito o decreto, foi lançado agora a iniciativa para que a comunidade acadêmica produza para as escolas. Tem pouca coisa. Eu estava vendo uns livros que tem por aí, de nível de divulgação, e eu não consegui reunir muita coisa. Têm livros que podem servir como obra de referência, mas que precisam ser “traduzidos” para o uso do Ensino Fundamental ou Médio. Isso vai levar algum tempo. Mas é interessante se criar agora, dentro e fora da Universidade, certos núcleos para a redação desses textos fundamentais.
Há também o problema das editoras, que precisarão renovar seus livros já prontos. Mas há de se lutar contra esses empecilhos. Primeiro essas pessoas produtoras desses livros, professores de história contemporânea, história colonial, que redimensionem o espaço da discussão sobre África e afros-descendentes. Então, há um outro encontro entre aqueles que vão produzir alguma coisa e aqueles que vão editar. E, depois, para que tudo isso também se suceda não é necessário só os livros mas também a formação continuada dos professores das escolas públicas.
Mas o treinamento obrigatório, a reciclagem de professores junto a entidades afro-brasileiras, Universidades e institutos que se dedicam ao estudo do assunto foi vetado também. O argumento do MEC, dizendo que isso não se faria necessário, é que o tema já é mencionado na Lei de Diretrizes e Bases.
A Lei de Diretrizes e Bases não dispõe sobre a formação de professores, talvez seja esse o problema, mas isso me parece ser necessário. Os cursos me parecem imprescindíveis para dar uma orientação aos professores, saber o que eles vão dar. A preocupação deles, pelo que senti nessa experiência que tive, é essa: não se têm livros e como vai se passar o conhecimento aos alunos. Eu me lembro que as escolas que visitavam o Museu de Arqueologia e Etnologia, aqui da USP, tinham alguma dificuldade em passar pelo módulo África. Queriam visitar o museu todo, mas o módulo África muitas vezes não queria visitar porque os professores não se sentiam a vontade para explicar, havia um estranhamento muito grande em relação à culturas africanas. E esse estranhamento ainda continua, e não é só dos professores do secundário. Eu vejo em sala de aula estudantes que faz o meu curso de Introdução à Etnologia da África Negra e muitas vezes é alguma coisa de longínquo, de exótico...

Ainda é o folclórico.
Exatamente. Dos filmes que estão por aí, Tarzan, estereótipos ainda reinam. E essa é, talvez, a grande tensão de colocar no currículo. Ainda mais num país que tem metade da população descendente, de vários graus. E depois não é só a descendência biológica, é a descendência cultural. Porque nós estudamos a História da Revolução Francesa, Idade Média, e nós não aprendemos História de África? É uma fronteira do Brasil. O Atlântico não é tão imenso, ainda mais hoje em dia, para que nós não possamos estar do outro lado com os nossos irmãos africanos. Talvez, para as companhias aéreas que ainda acham que sim e são passagens caríssimas, mais caras do que para a Europa. Há ainda muitos países que falam português, que estão conosco, foram colonizados pelo mesmo colonizador, têm uma história muito próxima da nossa. A gente desconhece também a nossa dimensão na questão do tráfico. Há um historiador, Felipe Alencastro, que escreveu um livro há dois anos, O tratado dos viventes, que demonstra, em partes, que a formação do capitalismo brasileiro dependeu do tráfico em Angola. A história de Angola está muito ligada à do Brasil. Os angolanos estudam, de certa maneira, um colonialismo português e um colonialismo brasileiro em relação à Angola. Então deve se desmistificar muitas coisas, há uma mistura muito grande.

No estudo secundário é pouco mencionado, ou até mesmo nem sequer se menciona as etnias e suas diferenças.
Exato. Eu sou Angolano, vim há quase 30 anos, tenho 25 só de USP. No começo, eu ficava admirado com livros, até mesmo acadêmicos, que falavam da escravidão e que traziam uma série de conceitos sobre diversidade cultural misturando-os. Diziam que vinham para o Brasil angolanos, benguelas, bantus, sudaneses, pensando que isso eram etnias, e não eram. Toda uma mistura que não traduz a realidade. Os bantus são um grupo etnico-lingüístico que agrupa uma quantidade de grupos étnicos ao sul do Equador, na África Austral. É uma grande família lingüística como nós poderíamos agrupar as línguas latinas. Há uma afinidade lingüísticas mas são línguas diferentes. E o continente africano possui 1500 línguas. Fala-se de África como uma certa homogeneidade. Fala-se africanos, como poderíamos falar latino-americanos, com uma complexidade talvez maior do ponto de vista etnico-lingüístico. Com os sudaneses também é a mesma coisa, são uma família etnico-lingüística. Por exemplo os angolanos (como identidade em construção) só surgiram no século XIX, com a criação dos Estados Nacionais, depois de 1885 com a Conferência de Berlim que delimitou arbitrariamente as fronteiras imposta pelo colonialismo...

As fronteiras "retas"?
Isso. Cortando os povos, as línguas, tudo. Desrespeitando totalmente as culturas existentes. Há ainda gente que telefona aqui para o Centro e diz “professor, eu tenho aqui uma palavra que eu preciso traduzir, é uma palavra africana” , jornalistas mesmo, e eu digo “meu amigo, são 1500 línguas. Se eu puder ajudar...”. Isso demonstra uma ignorância total.
Então, a tomada de consciência demanda um trabalho gigantesco, mas não que não se possa fazer. Tem que, agora, obrigar mesmo. As coisas não podem ficar só como uma intenção curricular e depois os governos digam que não têm possibilidade e continuem dando aquilo que já é dado. Não. Tem que se fazer um certo esforço. E a comunidade toda deve se esforçar.

E o senhor crê que a lei 10.639 possa ser uma ferramenta para a diminuição do preconceito racial?
Eu acho. O problema está na maneira com que for ensinada nas escolas. E é por isso que precisa capacitar os professores. Havendo a falta de conhecimento, vão dar aquele conhecimento estereotipado. Que já existe, por vezes, nas rádios, jornais e televisão. A notícia é uma forma de se colocar isso. Os jornais quando falam na Guerra no Kosovo falam de limpezas étnicas. Quando falam de África, falam de guerras tribais. E quando falam de guerras tribais é um estereótipo, uma forma pejorativa. Essa carga acaba sendo repetida e repetida, formando uma opinião pública errada. Uma notícia de três minutos num jornal de televisão tem um poder de ação muito grande. Isso é problemático.
E o preconceito quase sempre deriva desse desconhecimento?
Exatamente. A culpa também não é só dos jornalistas. Quer dizer, o pessoal que se forma também devia ter uma matéria que fosse formadora desses aspectos, que contribuísse para a diminuição do estereótipo, do preconceito. Eu lembro quando minha filha entrou na escola, havia livros dela que me arrepiavam. Diziam, assim, coisas simplistas como “escravizou-se o homem negro porque na África já havia escravidão e o índio estava desabituado, não tinha hábitos de escravidão” Isso é uma forma tão simplificada que conduz ao erro.

E tão comum de encontrar ...
E tão comum de encontrar. Depois há outra passagem que me lembro dizendo “depois vieram os imigrantes substituir os escravos porque eles tinham uma agricultura mais desenvolvida.” Agricultura na África é coisa de 3 mil anos! Experiência, então, em agricultura tropical é mais africana que européia. Enfim, todas essas coisas precisam ser rediscutidas. E depois começar a criar, também, um elemento de auto-afirmação. Parece que África é ausente de cultura, então, as próprias iconografias que ilustram os livros colocam sempre, quando se fala em África, negros ou em navios negreiros ou acorrentados. E depois, por exemplo, Tumbuctu era um império do século XV, e que tinha até Universidade que espantou cronistas árabes. Então são essas coisas que devem servir para a auto-afirmação para os próprios afros-descendentes.

A mesma lei oficializa o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra no calendário escolar. Como anda a consciência negra brasileira e se fez necessário a oficialização do dia?
Eu acho que é um marco. Se o Brasil tem heróis brancos, porque não tem um herói negro, que é Zumbi? É um marco da resistência e talvez a sua sociedade era muito mais aberta. A gente pensa que o quilombo era um lugar só de negros, mas no Quilombo dos Palmares há crônicas dizendo que até brancos viviam lá dentro, índios e mais. E era de uma dimensão enorme, resistiram durante tanto anos e era uma ligação com África muito grande. O quilombo é uma coisa também criada na África. A rainha NZinga, que passa para o folclore brasileiro como rainha Ginga, era um rainha africana que resistiu 40 anos aos portugueses. E ela passa num rito de iniciação num grupo guerreiro chamado Jaga que tinha acampamentos militares chamados quilombos. E que eram uma máquina de guerra na resistência, e ela passa pelo rito porque quer lutar contra os portugueses. Então, acho isso interessante, o dia, o marco. Eu acompanhei a um filme, de uma colega nossa, Ori da Raquel Gerber, que é uma história no fundo baseada numa personagem, nossa amiga que infelizmente faleceu, uma historiadora negra, Beatriz Nascimento, que tenta recuperar as suas origens em Angola. No fundo, serve-se como pretexto, essa parte é um pouco ficcional, para dar o histórico do movimento de consciência negra, do MNU, Movimento de Negros Unificados, desde das suas origens. Mas não só, também de outros movimentos paralelos. Eu acompanhei isso, um pouco pelo lado da Universidade e pela amizade com certas pessoas.
Eu não estive nunca no movimento, mas quando era solicitada uma palestra ou coisa assim eu atendia. Eu acompanhei, e realmente esses movimentos de consciência nesses últimos 20 anos foram muito importantes. No início, as coisas eram muito fragmentadas, isoladas em um ou dois intelectuais negros que estavam ligados à Universidade. Hoje, não. Há vários núcleos, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia.
Um outro exemplo. Eu me lembro que, uma vez, estudantes de história duma associação estudantil, se reuniram – há quase 10 anos – e discutiram o que é que na História do Brasil não é falado? Qual o silêncio na História do Brasil? E falaram: os negros e África. E promoveram um grande encontro de estudantes e convidaram várias pessoas que trabalhavam com África para fazer palestras. Foi uma das coisas mais bonitas que eu vi na minha vida. Fui a Porto Alegre e tinha 700 a 800 pessoas inscritas. Passamos dois ou três dias, e tinha ônibus de todas as partes, vários estados, era lá no Sul e tinha gente do Centro-Oeste e do Norte. Aí, chegaram a conclusões e disseram que a próxima, depois de dois anos, seria feita novamente sobre História da África. Foi feita em Ribeirão Preto, em Aquidauana, no Rio de Janeiro, um outro em Volta Redonda, e depois, isoladamente, no Centro-Sul e depois, quando seria no Estado de São Paulo, deixaram cair e nunca mais foi feito. Alguns outros encontros continuaram, mas daquela magnitude não mais. Foi uma pena. Quem sabe agora há uma nova motivação para os estudantes não só de História, mas de Ciências Sociais, Jornalismo, das Ciências Humanas em geral.

Serão ensinadas, nas aulas de Educação Artística, as artes africanas e afro-brasileiras. Isso é importante?
Muito. E isso também não é uma coisa nova, tem sido feito. Eu conheço pessoas que fizeram cursos sobre África e dão cursos em escolas, levando todo um aprendizado e uma dinâmica. Sobretudo na periferia onde há muito estudantes afro-descendentes que encontram, principalmente nos movimentos de músicas, hip hops, um interesse muito grande. É só questão de levar o conhecimento a eles porque interesse há.

Finalizando a entrevista, qual a expectativa do senhor sobre os efeitos da nova lei na sociedade brasileira?
É isso que eu penso. Eu acho que esse decreto é um desencadeamento de um processo que deve ser cultivado. Eu costumo dizer que eu sou um “afro-otimista” e não é só isso, durante os últimos 20 anos e vi um crescimento em todas as áreas de pessoas interessadas. Então a tal da obrigatoriedade, eu penso esse decreto como a possibilidade de agilizar para que isso possa dar certo. Por isso mesmo é que eu acho que grandes processos passam pela educação. A questão fundamental é a diminuição do preconceito. O ideal é aboli-lo, mas pelo menos combatê-lo, e isso passa, sem dúvida, pela educação, nas escolas e no ensino básico. Por isso eu acredito que tem tudo para dar certo.

.:: Fonte: SDI - Assessoria de Comunicação

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • Twitter
  • RSS

0 Response to " "

Postar um comentário